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Este texto faz parte do livro “Nômade digital: um guia para você viver e trabalhar como e onde quiser” e foi adaptado. 

“Essa coisa de gastar a melhor parte da vida ganhando dinheiro para gozar uma duvidosa liberdade em sua parte menos valiosa me faz lembrar aquele inglês que primeiro foi à Índia fazer fortuna para poder depois voltar à Inglaterra e levar uma vida de poeta”. 

–– Henry David Thoreau, Walden; ou, A Vida nos Bosques.

Digite #wanderlust no menu de buscas do Instagram e você encontrará mais de 70 milhões de publicações. A palavra, que virou febre nas redes sociais –– e inspiração de tatuagem para muito millennial por aí ––, tem origem na língua alemã: wander (caminhar/vagar) + lust (desejo).

Numa tradução quase que literal para a língua portuguesa, podemos dizer que é o desejo de viajar. Numa tradução quase que filosófica, podemos dizer que é o desejo incontrolável de explorar o mundo, de caminhar rumo ao desconhecido, uma espécie de saudosismo idílico por lugares nunca antes visitados que, de algum modo, fazem parte de uma busca por si mesmo.

Todo esse hype em torno do termo wanderlust expõe, ainda que de forma figurativa, uma certa insatisfação mundial dos mais jovens com a relação que a sociedade tem com o trabalho. Aquele negócio de bater ponto às 9h e depois novamente às 18h semana atrás de semana. Viver a mesma rotina de segunda a sexta-feira, durante anos, enquanto você vê sua vida passar pela janela de um escritório –– ou de um automóvel, enquanto está preso num engarrafamento no caminho para a labuta. Você envelhece e acumula coisas que não consegue usufruir por falta de tempo. Se apega, então, ao que lhe resta: uma promessa distante e vazia de uma aposentadoria que, magicamente, resolverá todos os seus problemas. Isso, claro, se você não morrer de infarto aos 40 anos por problemas no miocárdio relacionados ao estresse no trabalho.

Os mais velhos, muitos dos que conheço, pelo menos, costumam chamar os millennials de mimados por buscarem essa liberdade na equação vida pessoal x vida profissional. Repetem frases de efeito sobre trabalho duro, bradam sobre como eram as coisas no tempo em que eram jovens, mas, a verdade é que não há mérito algum em ser um workaholic. Pelo contrário. Pergunte sobre isso para o filho que teve uma mãe ausente por causa do excesso de trabalho de sua progenitora ou para a viúva do executivo que enfartou depois que o mesmo passou meses trabalhando doze ou mais horas por dia.

Na verdade, ao apontar seus dedos para quem tenta viver uma vida diferente daquela imposta pela sociedade, ou melhor, para quem tenta, de fato, viver, estas pessoas apenas despejam suas frustrações, suas horas desperdiçadas em cubículos, suas reuniões familiares que foram trocadas por reuniões com aquele chefe sem noção, seus relacionamentos que deixaram de existir por conta das horas extras no escritório.

Julgar o outro e colocar toda uma geração dentro do mesmo saco dói menos do que aceitar que, sim, graças ao trabalho remoto hoje é possível trabalhar menos e com mais qualidade. É possível viver e explorar o mundo, caminhar rumo ao desconhecido, enquanto se ainda é jovem. É possível carregar o trabalho na mochila enquanto se passeia por uma praia paradisíaca no México ou se alimenta elefantes na Tailândia. E o melhor: como você verá ao longo deste livro, sem precisar ser rico e juntar uma fortuna.

O nomadismo digital surge como a peça que encaixa perfeitamente no vazio existencial daqueles que utilizam #wanderlust no Instagram ou tatuam a palavra alemã em seus corpos ou, metaforicamente falando, claro, em seus corações. É o estilo de vida e trabalho perfeito para aqueles que sentem o tal desejo incontrolável de explorar o mundo. Hoje, com um laptop, uma boa conexão com a internet e uma fonte decente de renda é possível vivermos como nômades, não aqueles que ainda vivem no calor escaldante do deserto do Omã, os beduínos, mas como nômades digitais no conforto de espaços de coworking climatizados ao redor do globo.

E não pense que esses negócios de wanderlust e nomadismo digital são coisas da nova geração. Embora ambos, a palavra e o estilo de vida e trabalho, tenham se popularizado há poucos anos, historicamente, temos vários exemplos de pessoas, famosas ou não, reais ou fictícias, que se guiaram por esse desejo incontrolável de buscar a liberdade que apenas os viajantes conhecem. Liberdade aquela que você não encontra dentro de um escritório, por mais cool que seja a sua startup ou independentemente do número de puffs coloridos na sala de convivência da firma. Mudam os termos, mudam os nomes, mas a psicologia humana segue com os mesmos desejos e anseios.

Henry David Thoreau, famoso escritor estadunidense, foi um desses caras que, embora nunca tenha usado #wanderlust no Instagram ou tivesse um laptop para trabalhar, compartilhava do desejo dos millennials de caminhar rumo ao desconhecido e pode ser considerado um pensador à frente do seu tempo.

O escritor, aliás, praticava o wanderlust da forma mais literal possível. Ele era um grande adepto de longas caminhadas rumo ao desconhecido. Literalmente falando. Suas andanças por vilarejos vizinhos nunca duravam menos de três horas. Ele chegava a andar 42km por dia sem destino. Deixava o corpo seguir por estradas de chão batido enquanto sua mente vagueava por lugares inexplorados. Era assim que encontrava inspiração para escrever. Quando chegava em casa após suas longas caminhadas, escrevia, escrevia e escrevia. Pelo mesmo tanto de tempo que andara. Uma maneira, segundo ele, de “evitar as armadilhas da cultura”. O que, nos tempos atuais, pode ser interpretado de várias maneiras.

Em 1845, aos 27 anos, Thoreau mudou-se para uma floresta às margens do lago Walden, nas proximidades de Concord, em Massachusetts. Durante dois anos, dois meses e dois dias viveu isolado numa casinha de madeira construída com suas próprias mãos. Sua ideia era, em suas palavras, “viver deliberadamente”.

Mesmo não sendo agricultor, se tornou autossuficiente plantando batatas e produzindo o próprio pão. Em virtude disso, até hoje é considerado referência para ecologistas e vegetarianos. Toda essa experiência de autoconhecimento está relatada em Walden; ou, A Vida nos Bosques, sua obra mais famosa, de onde tirei a citação que abre este capítulo e que serviu de inspiração para nomes como Mahatma Gandhi e Martin Luther King.

Numa de suas frases mais célebres, Thoreau diz que gostaria de “defrontar apenas com os fatos essenciais da existência, em vez de descobrir, à hora da morte, que não tinha vivido”. Foi esse mesmo sentimento que me motivou, também aos 27 anos, a me demitir do meu último emprego de carteira assinada e me tornar um nômade digital.

Assim como Thoreau, declarei minha independência pessoal. O escritor nunca foi nômade, nunca saiu do seu estado, mas, indiretamente, foi um dos grandes responsáveis pela rescisão da minha carta de alforria moderna, conhecida no Brasil como Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Indiretamente porque, na época, eu nunca havia lido uma linha sequer de seus livros, porém, como apaixonado por tudo que envolve a contracultura, fui influenciado desde a adolescência por autores e músicos que foram influenciados por ele em seus trabalhos.

Começando com Jack Kerouac e a geração beat, passando pelo movimento hippie, a Tropicália, o Festival de Woodstock, até chegar no maior expoente da contracultura na minha geração, o filme Na natureza selvagem, baseado no livro de mesmo nome que conta a história real de Christopher McCandless, jovem viajante estadunidense que, inspirado pelas ideias de Thoreau, resolveu “viver deliberadamente”. McCandless, no entanto, não teve o mesmo sucesso do escritor, mas não darei spoilers para quem ainda não assistiu ao filme ou não leu o livro.

Os ideais de Thoreau são compartilhados por beats, hippies, nômades digitais e outros tipos que buscaram ou buscam viver deliberadamente. Os beats, inspirados também por Jack London, cruzavam os Estados Unidos escondidos em vagões de trens de carga e trabalhavam aqui ou ali apenas para ter o que comer – e beber, já que levavam um estilo de vida boêmio. Os hippies, por outro lado, se apegaram aos elementos espirituais e místicos dos discursos de Thoreau – principalmente aqueles ligados à natureza. Já os nômades digitais, ainda que inconscientemente, compartilham das inquietações do autor com modelos pré-estabelecidos, sejam eles de trabalho ou sociais, presentes tanto em sua obra clássica Walden como no manifesto Desobediência Civil.

Me dei conta de tudo isso durante uma epifania num café em Nimman, famoso bairro de Chiang Mai, segunda maior cidade da Tailândia e considerada a meca dos nômades digitais por seu baixo custo de vida e ótima infraestrutura. Quando um sujeito magro feito palito e que aparentava estar na casa dos 60, com uma fisionomia parecida com a do meu pai (que por sua vez lembra o Drauzio Varella), me pediu um T, conhecido em algumas regiões do Brasil como benjamin, eu não imaginava que aquele evento corriqueiro culminaria numa das minhas melhores histórias de viagem.

Eric, o sujeito magro efeito palito e que aparentava estar na casa dos 60, precisava de um T, ou benjamin, porque dentro de meia hora teria uma reunião com um programador freelancer natural de Myanmar, pequeno país no sul da Ásia. Eric, assim como eu e minha esposa, é um nômade digital. Isto é, ele tem liberdade geográfica para trabalhar de forma remota de onde bem entender. O mais curioso é que, aos 69 anos, Eric ganha a vida fazendo o mesmo que eu: produzindo conteúdos. Depois de sofrer com graves problemas no joelho (sua primeira cirurgia foi em 1984), ele descobriu durante uma viagem para a China, em 2014, uma joelheira tecnológica que minimiza suas dores, garantindo assim uma melhor qualidade de vida – ele já fez trekking em montanhas com mais de 2.000 metros de altura desde então. Começou a escrever sobre isso num blog, o for-knees.com, e hoje paga suas contas, friso novamente, aos 69 anos, através de infoprodutos comercializados através de uma estratégia de marketing de conteúdo.

Antes de falarmos sobre negócios e os seus joelhos, Eric me contou um pouco da sua vida e de como em 2004, muito antes de se falar em nomadismo digital, foi parar em Chiang Mai. Americano natural de Boston, capital de Massachusetts, estado onde nasceu e viveu Thoreau, se mudou durante a adolescência para San Francisco, na Califórnia, durante o auge da cena hippie no final da década de 1960. Entusiasta do zen budismo desde os 14 anos de idade, quando leu Zen Flesh, Zen Bones, livro publicado em 1957 por Paul Reps e Nyogen Senzaki e relevante até hoje, Eric encontrou nos hippies a sua tribo.

Assim como Thoreau às margens do lago Walden, os hippies praticavam a agricultura de subsistência, ainda que em comunidade. Essa autossuficiência, juntamente com a parte espiritual e ambiental, foi determinante para que Eric tivesse sua primeira tentativa de viver deliberadamente. Porém, o abuso de drogas como LSD e maconha na comunidade hippie trouxe graves problemas para a sociedade da época. A dependência química se tornou uma realidade e o aumento da criminalidade disparou. Isso foi o estopim para que muitos jovens, como Eric, retornassem para o sistema capitalista. O Festival de Woodstock, em 1969, seria o final agridoce para um movimento que buscava apenas paz e amor.

Nos anos 1970, Eric se formou na faculdade e conseguiu um emprego na indústria farmacêutica. Nas três décadas seguintes viveu no automático, segundo ele, batendo o ponto todos os dias em um trabalho que desprezava.

Os Estados Unidos viviam um caos na primeira década dos anos 2000, com o atentado terrorista às Torres Gêmeas em 2001 e com a reeleição de George W. Bush em 2004. Logo após as eleições presidenciais daquele ano, Eric decide tirar um período sabático na Tailândia para estudar o zen budismo pelo qual havia se apaixonado na adolescência. Entre períodos em monastérios e retiros em montanhas sagradas, descobre o marketing de conteúdo e o nomadismo digital conversando com um compatriota na faixa dos 20 anos que encontrou por acaso em Chiang Mai, da mesma maneira como o acaso nos aproximou naquele café em novembro de 2017. Já sexagenário, Eric deixa de ser um passageiro para se tornar o motorista da sua própria vida, deixando de apontar culpados para seus problemas e declarando sua independência pessoal.

Após ouvir sua história atentamente, percebo que aquele senhor que um dia já foi hippie e que hoje é um nômade digital partilha dos mesmos valores que eu, Thoreau ou os millennials. Quando resolveu viver com os hippies em San Francisco não foi por vagabundagem ou para fazer uso de drogas psicodélicas. Foi por uma insatisfação com o sistema de trabalho da época. A mesma insatisfação que ficou adormecida por três décadas enquanto viveu no automático. A mesma insatisfação que eu, pouco mais de uma década depois da demissão de Eric e sendo de uma geração completamente diferente da sua, senti enquanto assistia minha vida passar pela janela de um cubículo onde eu não queria estar, mas precisava para pagar meus boletos. A mesma insatisfação que fez Thoreau se isolar às margens do lago Walden em 1845 para viver de forma deliberada e autossuficiente. A insatisfação que você que me lê talvez sinta ou já tenha sentido.

Naquele dia no café em Chiang Mai ainda trocamos figurinhas sobre SEO, WordPress, LinkedIn, infoprodutos, mercado digital, meditação e política externa. Fiquei maravilhado ao perceber o brilho nos seus olhos ao me contar sobre seus projetos.  Eric faz o que ama,  aos 69 anos,  e não tem planos de parar. Pelo contrário, tem novos projetos em seu horizonte, frutos do seu desejo incontrolável de explorar o mundo.

Esse brilho nos olhos, aliás, é comum em todos os nômades digitais que encontrei na estrada ou que entrevistei para esse livro. Todos nós, cujos valores nos tornam símbolos da contracultura do século XXI, decidimos não esperar mais pelos finais de semana ou por um período de férias para aproveitarmos nossas vidas. Ao deixarmos o mercado de trabalho tradicional para vivermos um estilo de vida que nos permite trabalhar e viajar o mundo ao mesmo tempo, aproveitamos a tecnologia para trabalharmos de acordo com os nossos próprios termos e condições. Algo que soaria utópico décadas atrás, hoje é totalmente possível para profissionais das mais diversas áreas graças a transformação digital. Por isso nossos olhos brilham.

A transformação digital que rompeu as fronteiras geográficas

Há vinte anos um executivo japonês chamado Tsugio Makimoto previu uma revolução. Em seu livro Digital Nomad, lançado no ano de 1997 em parceria com David Manners e praticamente ignorado pelo público e pela crítica, Makimoto escreveu num trecho quase premonitório que “redes sem fio de alta velocidade e dispositivos móveis de baixo custo quebrarão o vínculo entre ocupação e localização“.

Dez anos depois, em 2007, a ideia de nomadismo digital ressurge no best-seller mundial Trabalhe 4 Horas por Semana do autor Timothy Ferriss. Apresentando um conceito de que nossos ativos mais importantes são tempo e mobilidade, Ferriss pintou uma imagem glamourosa — a começar pelo título — de como automatizar a renda e viajar o mundo enquanto se ganha dinheiro.

Nem Makimoto, nem Ferriss, contudo, previram que o impacto da transformação digital em nossas vidas, pessoais e profissionais, seria tão grande e evoluiria tão rapidamente. Smartphones, aplicativos, redes sociais, economia compartilhada e serviços sob demanda simplificaram de tal maneira o modo como vivemos e trabalhamos que hoje as fronteiras geográficas já não são mais um problema e o nomadismo digital é uma realidade para milhares de profissionais ao redor do mundo — e o sonho de consumo de tantos outros milhões.

Os autores também não poderiam prever que todo um ecossistema seria criado por e para nômades digitais. Espaços de coworking e cafés voltados para profissionais que trabalham de forma remota estão cada vez mais em alta ao redor do mundo. O sudeste asiático, impulsionado pela bela e exótica Tailândia, tornou-se um centro mundial de nômades digitais. Basicamente, jovens adultos –– e outros nem tanto como o Eric –– de todo o mundo transformaram cidades paradisíacas e até então desconhecidas em suas estações de trabalho.

A boa notícia é que este não é um estilo de vida limitado para poucos sortudos. Essa transformação digital que rompeu totalmente as fronteiras geográficas, além de oferecer a possibilidade de que algumas funções hoje sejam desempenhadas de forma remota, ainda criou empregos que não existiam há 10 anos — e deve criar muito mais nos próximos anos: um estudo da Dell projetou que, até 2030, aproximadamente 85% das profissões serão novas, ou seja, ainda nem foram inventadas.


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Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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