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1.

Hoje faz três meses que mudei-me para Paris. Ou talvez foi ontem, não sei.

Dia desses um amigo, também expatriado, enviou-me uma mensagem em um desses aplicativos de mensagens instantâneas querendo saber como tem sido a adaptação por aqui, a nova rotina, esse tipo de coisa.

“Viver na França é bom, mas é uma merda. Viver no Brasil é uma merda, mas é bom”.

Acho que concordo com o ator francês Vincent Cassel, que tem casa no Rio de Janeiro desde 2013 e em 2021 parafraseou Tom Jobim; no original, o compositor de Garota de Ipanema refere-se aos Estados Unidos.

Os seis anos nômades tiveram um grande impacto em minha vida; para o bem e para o mal. Não tenho problemas de adaptação, de modo que hoje sei que posso me virar em qualquer cidade do mundo; da Cidade do México a Bangkok. Por outro lado, convivo com um sentimento constante de não pertencimento; de Paris a Imbituba.

Em minha cidade natal vivem pessoas que amo e sinto saudades, mas não sinto que eupertença a um lugar específico; não me sinto mais estrangeiro aqui do que lá.

“Não sou daqui, mas também não sou do outro lado. E o mundo não é senão uma paisagem desconhecida, onde o coração já não tem apoio. (…) Estrangeiro, quem pode saber o que esse nome significa? (…) Estrangeiro, confessar a mim mesmo que tudo me é estrangeiro”. (Albert Camus)

De certa forma, essa liberdade em não pertencer é também um alívio; posso sempre recomeçar em um outro lugar. Nada mais me é estranho.

2.

Hoje faz três meses que mudei-me para Paris. Ou talvez foi ontem, não sei.

Isso significa que meu visto de turista venceu. Não, não estou vivendo de forma ilegal. Dei entrada no meu titre de sejour, o título de residência francês, mas o processo leva uns meses; minha situação atual é uma espécie de residência temporária, um limbo judiciário que não me permite sair do Espaço de Schengen.

Recebi um e-mail do órgão responsável para me apresentar dia 06 de outubro no número 42 da Rue Charcot portando os meus documentos para a obtenção da residência definitiva. Felizmente, a comunicação veio por e-mail e existe o Google Tradutor, uma vez que não entendo um caralho do que os franceses dizem.

“Je suis l’étranger
Et ça peut se voir
Je ne parle pas
Tout-à-fait comme toi”

“Eu sou o estrangeiro
E isso se pode ver
Eu não falo
Exatamente como você”

(Mon Nom, por Rodrigo Amarante)

3.

Samir, o vizinho de baixo, esteve aqui ontem. Ou talvez foi anteontem, não sei.

Entendi o “bonjour”, o “je m’appelle Samir”, o “je ne parle pas anglais”, mas de resto recorremos a linguagem universal da mímica; ele é dono do bar no térreo do prédio (happy hour das 16h as 22h; cerveja 5 euros) e me passou o seu número para que eu o avise caso as coisas fiquem barulhentas.

O bar do Samir reabre na próxima semana após um mês fechado. Agosto na Europa é o equivalente aos meses de dezembro e janeiro no Brasil; tudo para. O que é estranho para mim, uma vez que meu trabalho, que está no Brasil, segue normalmente.

Ser estrangeiro, neste caso, é também ter uma espécie de vida dupla; vivo em dois ritmos, em dois fusos. Quando o relógio marca 13h em Paris, sempre lembro que são 07h no Brasil, “o pessoal deve estar acordando”. Às 17h daqui, quando meu expediente está encaminhando-se para o fim, penso que “agora é meio-dia no Brasil, o pessoal deve estar almoçando”. Quando deito-me, lá pelas 23h, ainda são 18h no Brasil, “o expediente deles deve estar encerrando”. A vida no Brasil não para quando pego no sono.

4.

Ainda não fiz amigos na cidade. E não é porque os franceses são isso ou aquilo ou porque tenham poucos brasileiros vivendo aqui (cerca de 60 mil brasileiros vivem na França; 12 mil em Paris); faltou-me energia social.

O processo para alugar um apartamento em Paris, como contei na 42ª edição desta newsletter, não é fácil. I. e eu vivemos em três endereços provisórios antes de, enfim, nos mudarmos para a residência no prédio do bar do Samir, de modo que minha energia social esteve esgotada nos últimos meses. E aí tem a mudança em si; contratar luz, internet, idas e vindas na Ikea.

A incerteza sobre onde morar também afetou o meu trabalho. Levei uma ou outra coisa com a barriga, fiz o que tinha que ser feito, mal consegui trabalhar no livro.

Agora que este peso foi retirado dos nossos ombros, finalmente estou começando a estabelecer uma rotina. Tenho uma mesa de escritório, uma segunda tela, trabalho rodeado pelos meus livros. Aos poucos, vou criando um pertencimento – ainda que, por ora, apenas da porta do apartamento para dentro.

Antes de fazer novas amizades, no entanto, preciso fazer a manutenção das antigas; ainda não enviei aquele áudio.

Publicado originalmente em 25 de agosto de 2023 na 44ª edição da newsletter Passageiro no Substack.


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Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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