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1.

“A palavra morte não é pronunciada nem em Nova York, nem em Paris, nem em Londres, porque queima os lábios. O mexicano, ao contrário, está familiarizado com a morte… conta piadas, aproxima-se a ela, dorme com ela e a comemora. É um de seus brinquedos favoritos e seu amor mais firme. Mas é verdade que há talvez tanto medo em sua atitude como na dos outros, mas pelo menos a morte não está escondida [. . .]. A morte [pode ser vista] como nostalgia, e não como a fruição no fim da vida, às vezes [ela] pode ser uma origem. A antiga fonte original é a sepultura, não um útero”. (Octavio Paz, escritor mexicano que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1990).

No México, a morte – tema tabu para muitas culturas – é motivo de celebração e tradição uma vez por ano. Cruzo com ela na esquina da calle 60 com a avenida 10 em Playa del Carmen.

Um mexicano baixinho acerta um pombo com um estilingue. Duas jovens gringas se assustam com o barulho do bicho despencando em meio aos galhos. Para o azar do caçador de pombos, o corpo cai do outro lado de um muro alto. Um mexicano curioso oferece ajuda. O baixinho sobe na cacunda do seu novo amigo e, finalmente, põe as mãos em sua presa. Tudo no México é teatral.

Continuo minha caminhada após assistir ao espetáculo da morte do pombo. Vejo um pequeno altar em frente a um estúdio de tatuagem. Garrafas de tequila, charutos e doces em meio a flores, velas e incensos. A oferenda é uma espécie de ponte entre o Mundo dos Mortos e o nosso mundo. Segundo a crença popular, nos dias 1 e 2 de novembro as almas dos que já se foram têm permissão divina para visitar seus familiares, que preparam altares com suas comidas e bebidas favoritas.

Um casal com um cachorro fantasiado de alebrije passa por mim. Em 1936, o escultor Pedro Linares López teve fortes alucinações que o fizeram imaginar estar em um bosque onde viu seres surreais e esses o acompanhando no caminho de volta à consciência. No percurso escutava as criaturas gritando “Alebrijes!” “Alebrijes!”. O nome em si não tem significado nenhum, mas devido ao sonho suas obras em papel cartão representando esses seres de outro mundo ganharam a exótica nomenclatura. No filme Coco (2017), da Disney/Pixar, os alebrijes desempenham um papel importante como guias espirituais dos falecidos durante o Día de Muertos.

2.

Sei que estou na badalada Quinta Avenida quando um mexicano mal encarado me oferece marijuana. “Você quer ficar chapado?”, ele me pergunta em inglês. Dou de ombros e me junto à horda de gringos em direção ao “Derrotero de las ánimas con alma, vida y corazón”, o tradicional desfile de Día de Muertos de Playa del Carmen.

Há uma pequena discussão em frente ao sempre brega Hard Rock Café. Um senhor de óculos escuros, vestindo uma camisa verde e amarela com os dizeres “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, é barrado na entrada do lugar por não estar usando máscara. A atendente explica de forma educada que são as regras e que ele deve respeitá-las.

O desfile, que lembra mais o Carnaval do que o Halloween, não é tão pomposo quanto os da Cidade do México ou de Oaxaca, mas diverte os presentes que o assistem através de suas telas apontadas para homens, mulheres e crianças com seus rostos cobertos por pinturas de caveira.

O espetáculo da morte no México
Desfile do Día de Muertos em Playa del Carmen. Foto: Arquivo pessoal.

3.

Sigo até a Plaza Fundadores e observo uma movimentação estranha. Um policial tenta acordar um gringo sentado no Portal Maya. O rapaz, que parece o Salsicha do Scooby-Doo e usa crocs, não esboça reação alguma.

Uma ambulância chega. Um enfermeiro avalia os olhos do gringo com uma lanterna. De novo, nenhuma reação. Aos poucos uma multidão de curiosos vai se formando. Há mais gente em volta da cena do que havia no desfile.

O rapaz é colocado em uma maca e levado até a ambulância. Uma procissão de fofoqueiros o acompanha. Uma velha, que não saiu do lado dos enfermeiros durante toda a movimentação, diz em voz alta: “Murió“. Sua alma ainda deve estar por aí, penso eu. Procuro o bar mais próximo e lhe ofereço uma margarita. Espero que ele tenha encontrado o seu alebrije.

Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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