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14 de abril de 2013.

Depois de seis dias de temperaturas geladas na Alemanha, minha próxima parada seria em Praga, na República Tcheca. Cheguei cedo à Estação Central de Dresden, fiquei observando os trens de carga que carregavam carvão e pensando no porquê de o Brasil insistir no transporte rodoviário. Faltava pouco mais de meia hora para o embarque. Comprei uma cerveja qualquer e tirei da mochila On the Road, de Jack Kerouac, que seria meu companheiro de viagem nas próximas duas horas até a capital tcheca.

O trem, que tinha como destino final Bratislava, na Eslováquia, estava praticamente vazio. Acomodei-me, dei um gole na minha Pilsner Urquell e fiquei deslumbrado com o visual. Era primavera, mas ainda havia neve no cume das montanhas e o verde da vegetação dava lugar a um amarelo quase marrom, proporcionando um clima de outono. A temperatura era agradável. Pela primeira vez desde que desembarquei no aeroporto de Frankfurt não usava luvas e cachecol. Às margens da ferrovia, o Rio Elba mostrava sua imponência. Vez ou outra avistava uma casinha. Em certo ponto vi ruínas de um castelo medieval.

***

Estação Central de Dresden, Alemanha.
Estação Central de Dresden, Alemanha. 14 de abril de 2013.

O trecho acima, nunca antes publicado, rascunhado num arquivo do Word e enviado por mim para meu próprio e-mail em 28 de setembro de 2013 sobre um evento aparentemente banal de 14 de abril do mesmo ano, narra o início da minha jornada como escritor e viajante. Foram as primeiras linhas que escrevi após ter contato com o trabalho de Jack Kerouac. Os dois primeiros parágrafos após eu ter colocado na cabeça que me tornaria escritor.

É estranho revisitar algo que escrevi há 7 anos. O estilo era outro. Eu era outro. Ainda não havia sido contaminado por algoritmos, SEO, palavras-chave, H1, H2 e meta-descrições. Os parágrafos eram mais longos, as frases mais idílicas. Não havia público-alvo, gatilhos mentais ou funil de venda. O texto era cru. Ingênuo, mas honesto. O ranking do Google não era uma preocupação. O LinkedIn não passava de um banco de currículos.

Não fui o primeiro nem serei o último a ter a vida mudada por On the Road. Bob Dylan fugiu de casa. Jim Morrison fundou o The Doors. Inspirado pelo jazz de Charlie Parker, muito café e benzedrina, Kerouac escreveu a primeira versão do seu livro mais famoso em abril de 1951, mas só ganharia notoriedade em 1957 quando foi resenhado pelo The New York Times. Para o gaúcho e gremista fanático Eduardo Bueno, o Peninha, tradutor da versão brasileira de On the Road e uma espécie de embaixador beatnik, “nenhum livro do século XX terá deflagrado uma revolução comportamental maior do que a obra de Kerouac”.

Se hoje aspirantes a escritores se preocupam mais com qual ferramenta usar para organizar suas ideias (Notion? Evernote? Trello?) do que com a escrita em si, Kerouac, que escreveu On the Road em três semanas num rolo de telex de 36 metros e 22 centímetros de largura, datilografava como um alucinado 12 mil palavras por dia, movido por aquilo que o poeta Lawrence Ferlinghetti certa vez bem definiu como uma “febre onívora de observação”.

Kerouac nos deixou cedo, em 1969, aos 47, após perder uma longa batalha contra o álcool. Morando com a mãe, uma católica fervorosa, em nada lembrava o espírito aventureiro de On the Road em seus últimos anos de vida. Morreu solitário, amargurado e reacionário, negando o movimento literário do qual foi o principal expoente.

Jack Kerouac em 1959. Foto: John Cohen/Getty Images
Jack Kerouac em 1959. Foto: John Cohen/Getty Images

Mas, isso pouco importa. Quando li On the Road pela primeira vez, naquele abril de 2013, foi como se o próprio Kerouac me abraçasse forte, me obrigasse a correr uma maratona e me golpeasse com um chute no estômago. Sentia falta de ar a cada parágrafo sem vírgulas escrito em ritmo de jazz. A estrada ganhava um novo significado. De mero turista espectador, me transformava num flâneur que invadia a cidade em busca de novas e boas histórias.

No primeiro capítulo do meu livro Nômade Digital, que só existe por causa de On the Road, escrevo, correndo sério risco de parecer exagerado, que “o nomadismo digital é a contracultura do século XXI“. Provavelmente não viverei tempo suficiente para saber se minha previsão foi acertada ou se nós, nômades digitais, fomos apenas uma moda passageira.

Nômade Digital, o livro, no entanto, acaba de se tornar uma nota de rodapé na história da literatura brasileira ao ser um dos finalistas do 62º Prêmio Jabuti na categoria Economia Criativa. Tudo isso porque em 28 de setembro de 2013, inspirado por Kerouac, escrevi os parágrafos que abrem esse texto.

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On the Road termina após a melancólica separação dos personagens numa noite gélida de Nova York.

Eu me lembro de Dean Moriarty, eu me lembro do pai que nós nunca encontramos, eu me lembro de Dean Moriarty“.

Hoje eu me lembro de Jack.

Jack Kerouac e o livro que me inspirou a ser escritor e cair na estrada.


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Jack Kerouac e o livro que me inspirou a virar escritor, cair na estrada e ser finalista do Jabuti

Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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