É verão em Roma e, entre uma taça de aperol spritz e outra, dois casais noruegueses na faixa dos 50 me perguntam se podemos compartilhar a mesa no Cave Canem, o melhor happy hour –– de acordo comigo mesmo –– de Trastevere, o bairro mais boêmio da capital italiana.
A Noruega é um país nórdico com uma população estimada em pouco mais de 5 milhões de pessoas. 10% dessa galera, ou 1 a cada 10 noruegueses, leu A Morte do Pai, primeiro de seis livros autobiográficos (ou autoficcionais) da série Minha Luta, lançada em 2009 pelo até então desconhecido escritor Karl Ove Knausgård.
A escritora britânica Zadie Smith declarou certa vez que esperou por cada novo volume da série como um drogado anseia pelo crack. Exagero? Nem tanto. Eu também senti abstinência a cada lançamento. Knausgård é o escritor contemporâneo que mais me fascina. Ele consegue fazer uma ida ao banheiro parecer interessante. O magnetismo provocado pela obra do norueguês costuma captar os leitores de forma imediata.
Seus livros contam eventos corriqueiros em detalhes microscópicos. A morte de familiares. Os relacionamentos amorosos. O nascimento dos filhos. Faxina. Festas de crianças. Bebedeiras. Ressacas. Mais bebedeiras. Café da manhã. Tudo está lá. E incrivelmente detalhado.
Os acontecimentos mais marcantes são justamente os mais comuns a qualquer um de seus leitores. Mas, por que a vida banal de um escritor desconhecido se tornou um fenômeno literário?
Knausgård é um sujeito comum – e isso é familiar
Após uma breve conversa sobre futebol, onde comentamos sobre o embate de nossas seleções nacionais na Copa do Mundo de 1998 e o fato de o Brasil nunca ter vencido a Noruega, pergunto se meus novos amigos conhecem Karl Ove Knausgård.
Eles o conhecem, claro. Três dos quatro leram a série Minha Luta e ficam surpresos por eu ter feito o mesmo. Conto que ele esteve no Brasil durante a Flip de 2016 e é um nome relativamente conhecido em terras tupiniquins.
Emma, designer de interiores e, segundo seu marido Jørgen, o único da mesa que não leu nenhum dos livros de Knausgård, fã número 1 do autor, me explica um pouco do sucesso do escritor na Noruega.
Ao contar sua vida em Minha Luta, Knausgård optou por utilizar nomes verdadeiros para os personagens de suas histórias. Nem todo mundo gostou disso. O autor foi processado por alguns familiares e sua ex-esposa, a também escritora Linda Boström Knausgård, pediu o divórcio logo após o sucesso mundial da série.
Isso fez com que a vida do escritor se tornasse um grande Big Brother pessoal –– o que aumentou ainda mais o interesse em seus livros. Emma me conta que eventos corriqueiros, como da vez em que Knausgård cortou sua longa cabeleira, eram noticiados na TV norueguesa. Uma ironia, uma vez que o próprio autor costuma descrever eventos como este em seus livros.
O narcisismo da obra de Knausgård em uma época onde a vida das pessoas nunca foi tão exposta –– por elas mesmo ––, onde todo mundo sabe a vida de todo mundo, explica seu sucesso. É como se ele tivesse transformado os stories diários do Instagram de milhões de pessoas ao redor do mundo em literatura. Há familiaridade em seu narcisismo.
A literatura de Knausgård é genuína e segue a fórmula dos conteúdos virais
Por que diabos Zadie Smith e eu ficamos em abstinência com os livros desse norueguês narcisista do caralho?
Seus livros não nos ensinam lição alguma, não há jornada do herói, não há nada de épico. O que o autor faz é criar uma sensação de que estamos testemunhando a vida como ela é, em toda a sua complexidade, das pilhas de louça pra lavar às tretas de família. Você se enxerga em suas histórias.
“Todo mundo quer salvar o planeta, mas ninguém quer ajudar a mãe a lavar a louça”. (P. J. O’Rourke).
A luta de Knausgård é a nossa luta. Os sonhos, as frustrações, as vitórias, as derrotas. Ao escrever sobre o ordinário, sem projetar visões grandiosas sobre viver uma vida profunda e com propósito, o autor gera um sentimento de familiaridade no leitor presente em tudo que é viral e vicia. Seu narcisismo é o ponto de partida para o nosso voyeurismo.
Todos somos narcisistas em algum grau e, quando enxergamos o que há de melhor e pior em nós mesmos refletidos no trabalho de um escritor que derrama suas angústias por páginas a fio, nos sentimos acolhidos. Não estamos sozinhos.
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