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Sou o primeiro cliente a sentar no Bar Itália nessa tarde fria de agosto. Meu objetivo é buscar no cotidiano de um boteco alguma inspiração para escrever uma crônica. Nada original, eu sei. Não serei o primeiro, tampouco o último aspirante a cronista a fazer o mesmo — e a escrever a respeito. Enquanto me enrolo com os clichês e folheio as anotações do curso de escrita criativa, motivo pelo qual estou sentado num boteco qualquer numa tarde fria de agosto, peço um rabo de galo para o “campeão”.

Um ítalo-brasileiro da Mooca que deve torcer para a Juventus, não a de Turim, me serve o drink que deixou de ser bebida de peão e se tornou artigo hipster na Augusta. O primeiro gole desce rasgando. Se a inspiração não surgir, pelo menos ficarei bêbado. O que não é de todo mal para uma tarde fria de agosto. O único sujeito no boteco além de mim, o ítalo-brasileiro, percebe minha careta ao beber o rabo de galo e pergunta se a bebida está muito forte. Sua voz parece uma máquina de terraplanagem. Dou um sorriso sem graça e digo que está no ponto. Mentira. O gosto é de perfume barato. Não que eu já tenha provado alguma fragrância, mas o leitor deve me entender.

Há um certo fetichismo com o estereótipo do escritor boêmio. Você imagina uma vida de estradas e tragos no melhor estilo Jack Kerouac, drinks com a Cat Power num bar chique do Leblon, quartos de hotéis em Madrid, e então se vê numa tarde fria de agosto num boteco qualquer de São Paulo tomando rabo de galo com gosto de perfume barato. Sem mencionar que sua única companhia é um ítalo-brasileiro corpulento e com cheiro de fritura. Para o cenário ficar ainda mais deprimente, você pede mais uma dose.

Nessa altura já estou levemente embriagado. Tento pensar que o rabo de galo é um aperol spritz e que o número 453 da Rua Lituânia é o 11 da Piazza San Calisto, no coração do boêmio bairro de Trastevere, em Roma. Na mesa ao lado, vazia, imagino a francesa loira que fitei no Cavecanem, o bar do número 11 da Piazza San Calisto, enquanto ela escrevia qualquer coisa num caderno velho e lançava a fumaça do seu cigarro no meu rosto. Penso que ela poderia, assim como eu nessa tarde fria de agosto, estar escrevendo uma crônica. Mas, o gênero literário não faz mais tanto sucesso no seu país. Isso foi algo que aprendi no curso de escrita criativa, aliás. Talvez ela estivesse escrevendo suas memórias ou aquele caderno velho fosse um diário. Nunca saberei. Nunca lerei aquelas linhas. E ela nunca lerá as minhas.

Termino a segunda dose e o ítalo-brasileiro corpulento e com cheiro de fritura me oferece mais uma. Peço a saideira. Ele diz que essa está caprichada. Eu comprovo o contrário. Ao observá-lo atrás do balcão me olhando fixamente, imagino que cena passa diante daqueles olhos pequenos e espremidos no rosto grande e desproporcional. Não deve ser todo dia que um freguês senta numa tarde fria de agosto e escreve coisas banais num caderno, ainda que mais novo que o da francesa de Trastevere, enquanto toma rabo de galo com gosto de perfume barato.

Saco meu celular do bolso da calça e, entre notificações de mensagens que não quero ler, percebo que quase duas horas se passaram. Tudo que tenho são linhas desconexas, anotações sem sentido, um prazo apertado e uma provável ressaca no dia seguinte.

Se Fernando Sabino queria que sua última crônica fosse pura como um sorriso, desejo apenas que a minha próxima esteja melhor que o rabo de galo dessa tarde fria de agosto.

Publicado originalmente no Medium.

Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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