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Imagino que o carrinho de chá seja uma invenção inglesa. Consigo visualizar a cena de um empregado real atravessando uma sala gigantesca do Palácio de Buckingham com um carrinho de chá para servir a Rainha Vitória no século XIX. Na casa do meu avô paterno, no entanto, o móvel sob rodas fazia as vezes de bar. Lembro das reuniões familiares onde meu pai e meus tios serviam suas próprias doses tiradas de garrafas verdes de uísque.

Eu nunca tive uma boa relação com meu avô. Ou sequer uma relação. Quando nasci ele já estava chegando aos 70 e tinha outros 10 netos. Provavelmente estava de saco cheio de crianças. Hoje não o culpo por isso. Até entendo. Tento me apegar às boas lembranças. Como as reuniões familiares regadas à uísque, por exemplo. Embora eu não tivesse idade para beber e de fato não o fizesse, consigo sentir essas lembranças de odores amadeirados. Lembro com carinho, um carinho estranho e que talvez explique muita coisa, dessas garrafas verdes perfiladas em cima do seu carrinho de chá feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia.

No começo de 2016 recebi uma ligação da minha mãe. Ela não tem o costume de me ligar. Esperei o pior e ele se constatou: meu avô havia falecido. Minha avó já tinha falecido há algum tempo. Quando um casal de idosos morre, seus objetos pessoais tendem a morrer junto. Às vezes os filhos ficam com alguma coisa. O que sobra é doado, vendido ou destruído.

Algumas semanas após a morte do meu avô, ao entrar pela última vez em sua casa, já com uma placa de “vende-se” no muro e praticamente sem seus objetos e memórias, notei o velho carrinho de chá feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia encostado na parede branca e mofada da sala. Sua superfície já não comportava mais nenhuma garrafa. Os filhos devem ter dividido as garrafas verdes de uísque — pensei. As grandes rodas, que lembram as das charretes do período vitoriano, estavam tortas, deixando o carrinho de chá feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia com o aspecto do Lightning McQueen quando está triste — aquele da animação Carros, sabe? O leitor que tem uma criança pequena na família entenderá o que digo.

— Quem vai ficar com o carrinho de chá? — perguntei para minha mãe.

— Ninguém quis ficar com ele. Acho que vamos jogar fora. — ela respondeu.

Fiquei com o carrinho. E com duas garrafas de Conde de Foucauld da safra de 1978 que devem estar com gosto de vinagre, mas deram um ar nobre ao agora meu carrinho de chá feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia.

O duro foi subir as escadas com ele. Moro no terceiro andar de um prédio desses do Minha Casa Minha Vida. Não temos elevador, então o carrinho de chá feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia correu o risco de ficar com a aparência do Lightning McQueen depois de sofrer um acidente na Copa Pistão.

Já instalado ao lado do meu desconfortável sofá azul e sem danos aparentes, o carrinho de chá feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia foi voltando à vida. Na parte superior coloquei as duas garrafas de Conde de Foucauld de 1978 que devem estar com gosto de vinagre, uma garrafa de Jack Daniel’s que comprei no Duty Free do aeroporto de Buenos Aires e uma dessas vitrolas em forma de maleta que servem apenas de decoração, uma vez que seus pequenos corpos não aguentam a vibração de suas caixas de som embutidas, fazendo com que os discos pulem. Na parte inferior despachei uns poucos vinis comprados em alguma Urban Outfitters e outras bugigangas compradas em viagens. Agora o carrinho de chá feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia tem uma nova identidade e uma nova história num novo lar.

Isso tudo foi há dois anos. Ontem, ao sentar no meu desconfortável sofá azul e me servir com uma dose de Jack Daniel’s, não daquela garrafa, mas de outra comprada também num Duty Free, já que no Brasil o preço é absurdo devido aos impostos, lembrei do meu avô. Pensei em quantas garrafas de uísque devem ter sido abertas ao longo das últimas décadas em cima daquele mesmo carrinho de chá feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia. Quantas doses devem ter sido servidas. Doses de comemoração, doses de tristeza, doses para aliviar o estresse. Mais do que um móvel, tenho um objeto de história dentro do meu apartamento. Um objeto que mantém viva a lembrança e a história do meu avô.

Em meio aos sentimentos nostálgicos e entre um gole e outro, lembro também que no próximo ano, assim que tivermos um novo presidente, deixarei o Brasil. Será a primeira vez que poderei dizer de forma sincera que “SE FULANO GANHAR VOU EMBORA DO PAÍS!”. Independentemente do resultado das eleições terei uma boa piada para lacrar no Twitter, o que me faz abrir um leve sorriso de satisfação.

Mas, no momento, embora não me orgulhe disso, confesso que mais do que saber quem estará no Palácio do Planalto dia 1º de janeiro de 2019, o que me preocupa é quem ficará com o carrinho de chá do meu avô feito com mogno provavelmente extraído de forma ilegal da Amazônia quando eu me mudar.

Publicado originalmente no Medium.

Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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