“Star Treatment“, faixa que abre “Tranquility Base Hotel & Casino“, obra de arte difícil de se entender dos ingleses do Arctic Monkeys, começa com os versos “Eu queria apenas ser um dos Strokes / Agora, olhe a bagunça que você me obrigou a fazer“.
Os Strokes foram um fenômeno do indie rock no início dos anos 2000. Já o “você” presente no segundo verso é Alex Turner, líder e principal compositor dos Arctic Monkeys, em letra autobiográfica onde conversa consigo mesmo numa espécie de retrospectiva de sua carreira.
A canção exterioriza uma série de conflitos internos do músico, falando sobre o desconforto com a fama, a necessidade de se reinventar dentro de estúdio e, principalmente, o profundo descontentamento de Turner com o próprio trabalho.
Lançado no último dia 11, “Tranquility Base Hotel & Casino” está sendo considerado como um divisor de águas na carreira de pouco mais de dez anos do grupo inglês, já que apresenta uma sonoridade completamente diferente dos registros anteriores da banda.
“Eu ficaria preocupado se nada tivesse mudado, principalmente porque faz cinco anos desde o último álbum”, disse Alex Turner em entrevista recente à Entertainment Weekly.
Acompanhei o pré e o pós-lançamento do álbum, li as entrevistas recentes de Alex Turner e mergulhei nas referências citadas por ele para entender o universo de “Tranquility Base Hotel & Casino“. Fazendo uma analogia aqui e outra ali, percebi que o álbum vai além da arte e é um verdadeiro case sobre reinvenção e protagonismo na carreira – principalmente se você tem um trabalho criativo (o que é o meu caso).
Continue lendo para entender como o processo criativo de Alex Turner durante as gravações de “Tranquility Base Hotel & Casino” ajudou a banda a se reinventar e a colocou pela sexta vez, com seis trabalhos diferentes, no topo das paradas – o álbum está vendendo mais que todo o Top 20 da parada de sucessos britânica combinado.
“A gente sempre fez assim e deu certo”
Dizem que “chegar lá é fácil, o difícil é manter-se“. E isso vale para toda e qualquer profissão. Os Arctic Monkeys chegaram lá no já longíquo ano de 2006 com “Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not“, álbum de estreia que bateu o recorde de vendas na Inglaterra.
Para manter-se no topo, os ingleses seguiram em “Favourite Worst Nightmare” (2007) a mesma fórmula musical do disco anterior e continuaram fazendo sucesso mundo afora, vendendo discos, lotando shows e enchendo seus bolsos.
O problema em seguir uma mesma fórmula por muito tempo é ficar para trás. Seja na música, na produção de conteúdo ou nos negócios. Você provavelmente já ouviu a frase “a gente sempre fez assim e deu certo“. Eu já ouvi algumas vezes. Geralmente, de empresários mais velhos que foram muito bem-sucedidos no passado e, hoje, por causa de uma visão ultrapassada, não conseguem ter o sucesso de outrora.
Se no segundo disco os Arctic Monkeys seguiram sua própria fórmula de sucesso, de 2009 para cá, com o experimental “Humbug” (2009), o americanizado “Suck It and See” (2011) e o roqueiro “AM” (2013), a banda tem procurado se reinventar a cada álbum.
Mas, chega uma hora que a fonte criativa esgota. Fazer mais do mesmo cansa. E Alex Turner também passou por isso.
Vencendo o bloqueio criativo
Em 2016, Alex Turner ganhou um piano de seu empresário ao completar 30 anos e viu a criatividade voltar.
“Nada do que saía da minha guitarra me surpreendia mais. Sentei naquele piano sem saber aonde iria me levar. Isso me ajudou com as músicas. Acho que adoro o desconhecido”, afirmou o músico em entrevista à Folha.
O disco anterior dos Arctic Monkeys é o mais bem-sucedido, comercialmente falando, da carreira da banda. E a tentação de seguir com um álbum no mesmo estilo era imensa. Alex contou para o jornalista Rodrigo Salem que houve um momento em que a banda cogitou a ideia de voltar para o estúdio e gravar uma segunda parte de “AM“. Segundo ele, isso não aconteceu por diversos motivos. Ainda bem.
Em outra entrevista, desta vez para a BBC, Turner diz sentir vergonha das músicas antigas da banda. Ao ser questionado pela entrevistadora se ele ouvia o material antigo dos Arctic Monkeys, revelou que os membros da banda chegaram a se reunir para revisitar a discografia juntos.
“Eu acho que isso pode ser útil às vezes. Ao nos prepararmos para entrar em turnê, decidimos ouvir alguns de nossos discos antigos. […] Existiam algumas letras que eu ouvia e pensava: ‘Não consigo imaginar o que eu estava pensando nessa hora. Vou deixar essa de fora agora’.”
Como produtor de conteúdo me identifiquei muito com essa fala de Turner. No meu último texto, aliás, comento que sinto a mesma sensação com meus textos mais antigos. A tentação de tentar emular antigos conteúdos que fizeram sucesso no LinkedIn e apelar para gatilhos e títulos à la BuzzFeed é grande, mas, assim como os Arctic Monkeys, tenho tentado seguir por novos caminhos.
A incansável busca de Alex Turner por novas referências
Se você quer ser um produtor de sucesso, seja um bom consumidor. Em todas as entrevistas que li, percebi que Turner citou muito suas referências na criação de “Tranquility Base Hotel & Casino“. Algumas perceptíveis, como David Bowie, Scott Walker e Serge Gainsbourg, outras nem tanto, como o brasileiro Lô Borges, citado pelo músico numa lista com músicas que serviram de inspiração para ele.
Porém, Turner disse também ter sido influenciado por conteúdos e temas fora da música: ficção científica, Stanley Kubrick e filmes antigos franceses e italianos. Todo esse conjunto de referências pode ser visto no clipe oficial de “Four Out of Five“.
“As pessoas não sabem o que querem até você mostrar a elas”
A famosa frase acima é de Steve Jobs. Até 09 de janeiro de 2007 ninguém queria um iPhone. Eis que o fundador da Apple o mostrou para o mundo e desde então ele passou a ser desejado.
Jobs descreveu-o como um produto separado em três: “um iPod com um ecrã grande e que funcionava por touch”, “um telemóvel revolucionário” e um “aparelho sem igual nas comunicações por internet”.
“Para vender algo familiar, torne-o surpreendente. Para vender algo surpreendente, torne-o familiar. Nos pontos mais extremos do pensamento radical, é crucial que artistas e empresários com ideias selvagens prestem atenção à puxada da familiaridade e se lembrem do aviso de Max Planck: até mesmo as mais brilhantes inovações científicas encaram um ceticismo inicial quando se distanciam demais do pensamento prevalecente. Grande arte e grandes produtos atendem a públicos onde eles estão”. ( Derek Thompson em ” Hit Makers“).
Para “Tranquility Base Casino & Hotel” os Arctic Monkeys adotaram uma estratégia diferente, mas familiar, de marketing. A indústria da música hoje é focada em singles. Como a pirataria e o streaming diminuíram drasticamente a venda de álbuns físicos, gravadoras e artistas têm focado na produção de hits – por isso temos tantas músicas descartáveis por aí e “artistas de uma música só”.
Mesmo lançando álbuns completos, o marketing tradicional de uma banda ou artista hoje segue uma fórmula: antes do lançamento do registro completo, duas ou três músicas são liberadas nas plataformas de streaming.
Alex Turner e cia foram contra a maré e resgataram a ideia de “álbum conceitual”, popularizado nos anos 70 por nomes como David Bowie, Pink Floyd e The Who, lançando uma obra que conta uma história com início, meio e fim. Ou seja, não faria sentido lançar músicas soltas antes do lançamento completo do álbum. Além disso, prepararam o terreno com entrevistas que mostraram que rumo a banda seguiria no próximo trabalho – aquela que cita o Lô Borges é um exemplo.
“Tranquility Base Casino & Hotel” é disruptivo desde sua concepção, fugindo totalmente do que é feito hoje na música. Seja pela sua sonoridade ou por sua forma de distribuição. A prova disso é que estamos falando dele até no LinkedIn. Aquele garoto espinhento que queria apenas ser um dos Strokes bagunçou tudo.