“Dizem que, seja lá o que você esteja procurando, encontrará aqui. Dizem que quando chegamos ao Vietnã entendemos tudo em questão de minutos, mas o resto tem de ser vivido. O cheiro. Isso é a primeira coisa a nos atingir, a prometer tudo em troca da nossa alma. E o calor. Sua camisa fica imediatamente encharcada“. Trecho do filme “O Americano Tranquilo” (2002), baseado no livro homônimo de Graham Greene.
À primeira vista, a Cidade de Ho Chi Minh (HCMC na sigla em inglês), conhecida até 1975 como Saigon, pode assustar aqueles não acostumados ao caos de uma pulsante metrópole com 13 milhões de pessoas e 7 milhões de motinhos envenenadas.
Ao contrário da capital Hanói, com sua bela cidade velha e lagos cobertos de neblina, encontrar os encantos da “Pérola do Extremo Oriente”, como HCMC é carinhosamente chamada, pode ser um pouco mais desafiador. Muitos visitantes de primeira viagem saem desiludidos. Sem um mapa e um plano, um dia de caminhada pode rapidamente se tornar uma experiência infrutífera. Mas, para aqueles dispostos a fazer um pouco de pesquisa, esta é uma cidade digna de meses, se não anos, de exploração. Lotada de estrangeiros em ruas onde arranha-céus dividem espaço com prédios centenários de arquitetura francesa, a cidade funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana. HCMC nunca dorme. Nem você. A menos que escolha cuidadosamente sua acomodação.
Minha casa temporária fica no badalado Distrito 1, ótima localização para conhecer as principais atrações turísticas da cidade. Com um bom planejamento é possível visitar lugares como o Museu da Guerra, o Palácio da Reunificação, a Catedral de Notre Dame e o Correio Central em um único dia.
Como nômade digital que sou, ou seja, como alguém que trabalha de forma remota enquanto viaja pelo mundo, minha vida, no entanto, não se resume a turistar e tirar selfies. Busco por um café com internet na Dong Khoi, antiga Rue Catinat, e me deparo com o imponente Hotel Continental. Foi aqui que, na primeira metade dos anos 1950, antes da Guerra Americana (conhecida como Guerra do Vietnã em outras partes do mundo), o autor e jornalista inglês Graham Greene, na época correspondente estrangeiro, escreveu o clássico “O Americano Tranquilo” (1955).
Sento no bar do térreo e peço uma cerveja e a senha do Wi-Fi. Sou o único forasteiro no lugar onde jornalistas, diplomatas e espiões costumavam confraternizar. A cerveja está quente e o sinal de internet é ruim. Enquanto procrastino meu trabalho, dou uma olhada nas avaliações dos hóspedes do Continental em um desses sites de reservas online. Com diárias a partir de R$ 720 parece ser consenso que o hotel vende ser o que já foi um dia. “Tudo no hotel é antigo e desgastado”, escreve Magdalena, do País de Gales. Brian, da Austrália, reclama do mesmo que eu: “cerveja quente e internet instável”. Eu deveria ter lido isso antes.
Assim como Greene nos anos 1950, também estou escrevendo um livro. Peço mais uma cerveja quente e abro o arquivo em meu laptop com a ridícula pretensão de ser inspirado pela mística daquelas paredes históricas – como uma jovem recém-chegada à Itália sonhando em escrever o próximo “Comer, Rezar, Amar” (2006) –, mas logo percebo quão ridícula é a cena.
A verdade é que a cidade mudou muito desde que Greene esteve aqui. O passado ficou para trás. Do bar do Continental consigo ver lojas de grifes internacionais e carros importados disputando espaço com motinhos envenenadas. Uma paisagem bem diferente da então Saigon dos anos 1950. Os cheiros e o suor na camisa, no entanto, continuam os mesmos. Senhorinhas com chapéus de palha vendem quitutes do outro lado da rua sob um sol escaldante.
Além de viajantes saudosistas como eu, HCMC tem atraído cada vez mais nômades digitais – que levam seus laptops para as diversas opções de cafés moderninhos e coworkings da cidade; e não para bares de hotéis decadentes que vendem ser o que já foram. Com um dos custos de vida mais baixos em todo o continente asiático, a diversidade de opções é um dos principais atrativos da cidade. Há lugares tranquilos, lugares movimentados, lugares baratos, lugares chiques. Um equilíbrio perfeito entre caos e conforto. A internet, item mais importante no checklist dos nômades digitais, é bem rápida – com exceção ao Hotel Continental.
Pago a conta e sigo em direção ao Rio Saigon. É 30 de abril, aniversário de 47 da reunificação do Vietnã, e, enquanto fogos de artifício explodem no horizonte, observo sorrisos e olhos marejados de vietnamitas de todas as idades. Compro um quitute de uma senhorinha e a caminho de casa uma jovem me entrega um panfleto de uma festa chamada Apocalypse Now. HCMC nunca dorme.
Texto originalmente publicado na Folha de S.Paulo em 19/05/2022.