Este texto inédito faz parte do meu novo livro “Viagens & outras flanagens” – ainda sem data de lançamento e ainda com título provisório.
I. Medo
Vim à Tailândia em busca de iluminação. O ano anterior havia sido intenso. Fim de casamento, incursões pelo leste europeu, lançamento do meu primeiro livro, novos sotaques, novos sabores, novos amores, novos medos e noites sem fim na São Petersburgo de Dostoiévski.
Escolhi como base Chiang Mai, no norte montanhoso do país. A ideia era meditar com monges, fazer yoga, estudar zen budismo. O starter pack dos vagabundos do Dharma de Jack Kerouac. Até que recebi um convite para flanar durante um final de semana por Bangkok.
“O flâneur é ingênuo quase sempre. Pára diante dos rolos, é o eterno ‘convidado do sereno’ de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio”. É assim que João do Rio define a arte de flanar, o mais interessante dos esportes, em A Alma Encantadora das Ruas, de 1908.
Fumegante é um adjetivo que pode descrever Bangkok. Seja por sua alta umidade do ar, na casa dos 80% quando desembarquei no Aeroporto de Suvarnabhumi, seja pelos pratos servidos em barraquinhas de rua suspeitas que atraem chefs consagrados do mundo todo, mas que não tive coragem de experimentar, ou então por sua vida noturna concentrada na caótica Khao San Road, o “centro do universo mochileiro”, como descreve Alex Garland em A Praia, de 1997, que deu origem ao famoso filme de mesmo nome com Leonardo DiCaprio.
A Khao San Road consegue reunir em um único local os mais diversos estereótipos que você pode encontrar na Tailândia: os mochileiros europeus e americanos com suas elephant pants e camisetas regatas com estampa da Chang –– uma cerveja local –– estúdios de tatuagem de gosto duvidoso, casas de massagem –– com e sem final feliz ––, ladyboys, espetinhos de insetos, baldinhos com bebidas destiladas e quinquilharias falsificadas dos mais diversos tipos. É onde Bangkok te domina, te joga no caos e te amedronta.
II. Delírio
É perto das 22h quando o motorista do tuk tuk nos deixa na esquina. Seguimos pela rua guiados pela música e desviando das mais diversas abordagens.
“Massaaaaaage?“, “beeeeeer?“, “tattooooo?”.
Os painéis de neon, assim como em Chiang Mai, parecem esconder algo. Faço um acordo com um ambulante e consigo dois baldinhos de rum com Coca-Cola por quase metade do preço. Três goles são o suficiente pra entrar no clima de Macarena, que toca a todo volume no Lucky Beer, enquanto mochileiros europeus e americanos fazem a coreografia.
A disputa pelo som mais alto entre os bares lembra os campeonatos de som automotivo comuns no sul do Brasil. O barulho é irritante. Assim que Macarena acaba no Lucky Beer, a música começa a tocar imediatamente no Khao San Center, o bar da frente, num embate sem sentido entre DJs.
Recarrego os baldinhos e te chamo pra dar uma volta. Seguimos desviando das abordagens, mas dessa vez nossos passos, já cambaleantes, são interrompidos por uma confusão generalizada. É Bangkok.
Dois grupos de tailandeses na casa dos 20 anos brigam em frente a uma casa de massagem. Uns quatro pra cada lado. Pancadaria mesmo. Vários golpes bêbados de muay thai cortando o ar fumegante da Khao San Road. “Hora de ir embora”, eu digo. “Vamos pra outro lugar”, você diz.
Ao ser abordado por um motorista de tuk tuk, pergunto se ele conhece algum bar legal em uma área mais calma. Ele cruza a umidade do ar na casa dos 80% com seu veículo nada seguro e nos deixa em frente a um lugar suspeito com um daqueles painéis de neon na porta de entrada.
Somos recepcionados por uma tailandesa com pouca roupa. O interior do lugar, com carpete vermelho nas paredes e um palco nos fundos, confirma minhas suspeitas. Ouço gemidos vindos de quartinhos na lateral e, enquanto tento desviar de ladyboys que tentam me agarrar, vejo uma briga em frente a porta de saída. “Hora de ir embora”, eu digo. Dessa vez você concorda, enquanto seguranças tailandeses saem no tapa com turistas americanos de meia idade vestindo largas camisas florais. Bangkok os pegou.
Flanamos pela madrugada e vemos ratos enlouquecidos destruindo restos de comida em grandes latas de lixo na avenida. Você diz que ainda é cedo para dormir, que deveríamos comprar mais bebida e irmos para o meu Airbnb. Eu te falo sobre Os Mutantes, você me fala dos filmes de algum cineasta sueco que não recordo o nome e, em algum momento desse delírio, chamo um motorista no aplicativo.
III. Iluminação
Na manhã seguinte, quase tarde de domingo, acordo no susto, no escuro, tentando processar a noite anterior. Olho meu reflexo no espelho do banheiro e, tirando a cara de quem acabou de acordar, não há uma tatuagem tribal em meu rosto. Tudo certo. Dou um sorriso leve.
Caminho até a sala e me deparo com a luz do sol fumegante de Bangkok entrando pelas cortinas abertas, te iluminando, você vestindo a minha camisa, de calcinha e pés descalços.
Você então me olha e finalmente encontro a iluminação, aquela iluminação, em seus olhos azuis. Bangkok me pegou.
Bangkok, março fumegante de 2020.