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“No cair da tarde de um início de julho, calor extremo, um jovem deixou o cubículo que subalugava de inquilinos na travessa S, ganhou a rua e, ar meio indeciso, caminhou a passos lentos em direção à ponte K.”

É com este parágrafo que Fiódor Dostoiévski abre Crime e Castigo, um dos maiores clássicos da literatura mundial. O livro conta a história de Ródion Raskólnikov, um jovem estudante, pobre e desesperado, que perambula pelas ruas de São Petersburgo até cometer um crime que tentará justificar por uma teoria: grandes homens, como César ou Napoleão, foram assassinos absolvidos pela história. Foram as caminhadas de Raskólnikov que me atraíram para a capital cultural da Rússia.

É setembro e, apesar de ainda estarmos no verão, faz bastante frio. Não estou em um cubículo na travessa S., mas sim no vigésimo andar de um moderno Airbnb situado em um enorme condomínio na região de Murino, há cerca de 30 minutos do centro de São Petersburgo.

Caminho, a passos lentos, em direção à estação de Devyatkino. Segundo o Google Maps, que logo mais se mostraria estar correto, são nove paradas até meu destino, a estação Ploschad’ Vosstaniya. Assim como em Moscou, as estações de metrô em São Petersburgo são belíssimas. Elas lembram salões de palácios e grande parte foi construída durante os anos da União Soviética a mando de Stalin, cujo objetivo era mostrar a importância do país para o exterior.

Após descer na Ploschad’ Vosstaniya, sigo meu caminho pela Nevsky Prospekt, a avenida mais importante da cidade. São enormes quarteirões povoados por prédios lindíssimos em ruas totalmente simétricas. O Google Maps, que novamente se mostraria estar correto, diz que estou há 14 minutos a pé do museu dedicado à Dostoiévski.

Prédio onde Dostoiévski morou de 1878 até sua morte em 1881. (Foto: Arquivo pessoal/setembro de 2019).
Prédio onde Dostoiévski morou de 1878 até sua morte em 1881. (Foto: Arquivo pessoal/setembro de 2019).

Dostoiévski viveu a maior parte da sua vida em São Petersburgo. Foram mais de 20 endereços na cidade. O último deles, localizado no número 5 da Kuznechny Pereulok, onde morou com sua esposa Anna e seus dois filhos até sua morte em 1881, virou museu. Foi neste apartamento que o autor escreveu sua última obra, Os Irmãos Karamazov, outro clássico da literatura mundial, publicado em 1880.

O museu, em si, é meio decepcionante. O prédio é o mesmo, mas o interior do apartamento não. A verdade é que o lugar foi restaurado posteriormente com base em notas, desenhos, fotografias e projetos feitos por Dostoiévski e Anna. Alguns itens pessoais do escritor, porém, permanecem ali –– como um chapéu e uma caixa de tabacos,

Encerrado o tour, fico com gosto de quero mais e decido, então, conhecer a São Petersburgo de Raskólnikov. Teria sido difícil seguir o rastro do personagem de Crime e Castigo se Anna, a esposa de Dostoiévski, não tivesse decifrado, após a morte do escritor, os topônimos referidos somente pelas letras iniciais no livro.

A “travessa S.”, por exemplo, se refere à Stolyarnyy, enquanto “a ponte K.” se trata da Kokushkin. Ao longo dos anos Dostoiévski abrigou seus personagens nas redondezas dos endereços de onde morou sem indicar os locais exatos. Foi Anna quem decifrou os quebra-cabeças.

Para Marina Uvárova, colaboradora científica do museu, em entrevista ao Russian Beyond, “temos de levar em conta que estamos perante uma obra literária”. Ela diz que “a São Petersburgo real mistura-se com acontecimentos ficcionalizados, tudo se transforma para resultar num romance genial”.

Sigo para a esquina da travessa Stolyarnyy com a rua Grazhdansky, onde Dostoiévski instalou Raskólnikov. No lugar há um auto-relevo mostrando o autor e uma inscrição com a frase “Casa de Raskólnikov”, além de dizer: “O destino trágico das pessoas dessa área de São Petersburgo foi a fundação dos sermões apaixonados sobre a bondade de Dostoiévski para a humanidade”. Infelizmente, não é possível visitar o pátio do prédio (algo comum em São Petersburgo), já que os moradores se cansaram das visitas de turistas e curiosos e decidiram colocar um portão no lugar.

No tempo de Dostoiévski, só na travessa Stolyarnyy havia 22 botecos. Em Crime e Castigo, Raskólnikov reclama algumas vezes da gritaria dos bêbados na rua. As tabernas têm um papel importante na São Petersburgo da obra. Foi precisamente numa taberna que Raskólnikov se encontrou com Marmeladov e ouviu estudantes falarem da “vida de uma velhota que não valia nada”.

Decido, então, procurar uma taberna que esteja aberta às 14h de uma terça-feira. Para a minha grata surpresa, o Google Maps me apresenta o Der Spieler, um pub alemão que costumava ser frequentado por… Dostoiévski! Ok, assim como o museu, não se trata mais do lugar original, mas os novos donos tentaram recriar o ambiente da época.

Peço uma cerveja, me acomodo perto do bar e tiro meu moleskine da mochila. Enquanto rabisco algumas ideias para um romance que quero escrever, observo um grupo de chineses que invade o recinto com seus guardas-chuvas coloridos. Chove lá fora. Aqui dentro reflito como o turismo faz com que a mística de qualquer lugar perca seu encantamento.

Me vejo sentado em um lugar que vende ser o que já foi, com a ridícula pretensão de escrever algo ali pelo simples fato de Dostoiévski já ter feito o mesmo dentro daquele perímetro, como uma jovem americana recém-chegada a Itália sonhando em escrever o próximo Comer, Rezar, Amar.

Coloco o moleskine de volta na mochila e tento me recuperar do autoconstrangimento causado pela minha visão. Pago a conta, sinto o vento gelado de São Petersburgo em meu rosto e caminho, a passos lentos, numa dessas tardes sem sentido, um pouco angustiado, um pouco envergonhado, tentando compreender todo esse saudosismo idílico da São Petersburgo de Dostoiévski e Raskólnikov.

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Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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