Pago 38 dólares americanos para o simpático funcionário da imigração e ele carimba meu surrado passaporte com a permissão para que eu fique apenas e exatos 30 dias na Indonésia. Com a reabertura do país após dois anos de fronteiras fechadas por causa da pandemia de Covid-19, o governo indonésio espera cerca de 3,6 milhões de turistas até o fim do ano. A julgar pela multidão de taxistas segurando plaquinhas com nomes ocidentais no Aeroporto de Denpasar, em Bali, pequena ilha localizada no centro do arquipélago indonésio, imagino que todos tenham chegado ao mesmo tempo.
Um nômade digital brasileiro que conheci em Koh Phangan, na Tailândia, foi quem me passou o contato de Wayan, simpático motorista que me explica a estrutura tradicional de batismo balinesa. Por aqui os bebês, independentemente do sexo, são batizados pela ordem de nascimento: Wayan (Primeiro), Made (Segundo), Nyoman (Terceiro) e Ketut (Quarto). Se você tiver um quinto filho, o ciclo recomeça. É totalmente possível (e comum) que dois Wayans formem um casal – e seu primeiro filho também irá se chamar Wayan. As famílias mais abastadas, no entanto, têm seus próprios nomes.
Diferentemente do restante do país, onde a maioria é islâmica – a Indonésia é o maior país muçulmano do mundo –, em Bali a religião predominante é o hinduísmo, tendo sido importado da Índia via Java. Após o Êxodo de Majapahit, violenta rebelião islâmica que varreu a região, a realeza hinduísta simpatizante de Shiva picou a mula de Java, refugiando-se em Bali. Além da religião, os javaneses também trouxeram para cá o sistema hinduísta de castas. Quem me conta tudo isso enquanto faço cara de paisagem é Wayan, não o motorista, mas o simpático (todo mundo aqui é simpático) gerente da pousada onde me hospedo em Ubud, cidade balinesa localizada entre plantações de arroz e vilas agrícolas.
Mesmo que por aqui o sistema de castas não seja tão discriminatório quanto o indiano, os balineses respeitam uma complexa hierarquia social. Confesso que eu teria mais chances de encontrar uma civilização secreta no coração da Amazônia do que de tentar entender o emaranhado sistema de clãs que ainda vigora, mas basta dizer que, para nossos padrões ocidentais, todo mundo em Bali faz parte de um clã, todo mundo sabe a que clã faz parte, e todo mundo sabe a que clã fazem parte os outros. Wayan, não o motorista, nem o gerente da pousada, mas o simpático atendente da loja onde compro um chip com internet para o meu celular, identifica a que clã faço parte e me indica um café moderninho onde posso levar meu laptop e trabalhar.
Nos últimos anos, Bali tornou-se um destino popular para nômades digitais graças ao seu clima tropical, sua natureza exuberante e, principalmente, seu baixo custo de vida. Porém, por mais que os nômades digitais não estejam entrando no país de forma ilegal quando seus passaportes são carimbados por simpáticos funcionários da imigração pelo período de apenas e exatos 30 dias, o clã dos trabalhadores remotos estrangeiros faz parte de uma área cinzenta da lei.
O visto de apenas e exatos 30 dias pode ser renovado uma vez por mais apenas e exatos 30 dias. Já quem planeja ficar mais tempo na Indonésia precisa enfrentar várias burocracias para conseguir (ou não) uma permissão de trabalho temporária de 6 meses. O problema, neste caso, é que qualquer pessoa que permaneça no país por mais de 183 dias em um ano se torna automaticamente residente fiscal da Indonésia. De acordo com Sandiaga Uno, Ministro do Turismo da Indonésia, que pelo nome deve ter nascido em uma família abastada, isso está prestes a mudar.
Com a popularização do trabalho remoto e a recém liberdade geográfica adquirida por milhões de profissionais ao redor do mundo, muitos países – incluindo o Brasil – perceberam a importância do clã dos nômades digitais para suas economias e estão resolvendo a área cinzenta das suas leis de imigração com vistos específicos.
Em entrevista recente para a Bloomberg, Uno afirmou que a Indonésia está trabalhando em um visto de cinco anos para nômades digitais. Além de regularizar a situação dos trabalhadores remotos estrangeiros no país e extinguir o risco de dupla tributação (em seus países de origem e na Indonésia), o visto de nômade digital indonésio seria mais longo do que qualquer outro visto do tipo. Dados compilados pelo professor Raj Choudhury, da Harvard Business School, mostram que a maioria dos vistos de nômades digitais oferece estadias de um a dois anos, com os mais generosos oferecendo uma estadia de quatro anos.
Wayan, não o motorista, nem o gerente da pousada, tampouco o atendente da loja de celulares, mas o simpático barista do café moderninho que Wayan me indicou (o Wayan da loja de celulares), me serve uma xícara de Kopi Luwak, café feito a partir de grãos extraídos das fezes de civeta, um mamífero típico da Ásia que lembra o nosso quati – “Kopi” significa “café” e “Luwak” significa “civeta”. O café, com perdão do trocadilho, estava uma merda. Ao meu redor, nômades digitais com a mesma vibe tilelê de Koh Phangan trabalham em seus laptops.
Ubud é considerada o centro cultural e espiritual de Bali e, como não fica perto de nenhuma praia, os forasteiros por aqui formam um seleto clã paz & amor que prefere tomar café feito de merda do que beber umas cervejas à beira-mar. Pago a conta e sigo para um warung pé sujo – “warung” é uma mistura de bar com restaurante. Faz um calor descomunal e tudo que quero depois de provar o Kopi Luwak é tomar uma cerveja bem gelada para tirar o gosto de merda da boca. Peço uma Bintang, a marca local, e quem me serve é Wayan, não o motorista, nem o…
Nômade Digital: um guia para você viver e trabalhar como e onde quiser
Para quem sempre pergunta: sim, meu livro “Nômade Digital: um guia para você viver e trabalhar como e onde quiser”, finalista do Prêmio Jabuti em 2020, também está disponível na versão digital.
Na obra mostro o passo a passo para aqueles que estão pensando em abandonar o escritório para migrar 100% pro remoto e cair na estrada – o livro foi escrito antes da pandemia e eu sigo não acreditando em um modelo híbrido, mas isso é assunto para outro texto.
Você pode garantir a sua cópia neste link.
PS: Caso você não tenha um Kindle, basta fazer o download do App de Leitura Kindle em seu smartphone, tablet ou computador para ler o livro. A obra não é disponibilizada em PDF para evitar a pirataria.
PPS: Se você é old school e gosta mesmo é de livro impresso, a versão física de “Nômade Digital” está com 50% de desconto no site da Amazon. Corre lá!