Acordo com uma voz falando coisas inaudíveis em um megafone. Lembro da minha infância em Imbituba, litoral catarinense, quando o carro do gás anunciava sua chegada. Mas, estou longe de casa. São quase 6h10 da manhã e o sol acaba de nascer em Istambul, na Turquia, única cidade do mundo dividida por dois continentes – Ásia e Europa.
Caminho ainda sonolento até a praça Taksim, onde Mehmet, anfitrião do Airbnb onde estou hospedado, me aguarda para tomarmos chá. Ele explica que a voz no megafone recitava uma passagem do Alcorão e que os muçulmanos devem realizar diariamente cinco orações públicas, que são conhecidas como Salat.
De maioria muçulmana, a Turquia é o único país islâmico que é laico. Mehmet me conta que, apesar dos turcos serem bastante religiosos, não é obrigatório rezar todas as vezes em que os megafones anunciam o Salat – ele me confessa ser desleixado em relação a isso.
Conto em um grupo no WhatsApp sobre a experiência de ser acordado por um megafone recitando uma passagem do Alcorão. Um amigo me alerta, em tom de brincadeira, que devo tomar cuidado com os terroristas.
Desde o 11 de setembro de 2001, o preconceito contra muçulmanos se tornou algo normal na cultura ocidental. Em qualquer tragédia ou acidente, a simples presença de um muçulmano no local o torna suspeito.
De acordo com o dicionário, a palavra ignorância significa “falta geral de conhecimento, de saber, de instrução”. Mark Twain (e não meu amigo Marc Tawil) escreveu certa vez que “viajar é fatal para o preconceito, a intolerância e as ideias limitadas”. Ele completou: “não se pode ter uma visão ampla, abrangente e generosa dos homens e das coisas, vegetando num cantinho do mundo a vida inteira”. Portanto, podemos dizer que, para o famoso escritor estadunidense, quem não viaja é ignorante – no sentido amplo da palavra.
Concordo com o pensamento de Twain, mas com ressalvas. De fato, viajar pode quebrar preconceitos, mas isso não acontece automaticamente – e não significa que quem não viaja é, necessariamente, preconceituoso.
Muito se discute entre meus amigos nômades digitais sobre a diferença entre fazer turismo e viajar. Diz-se que os turistas, que geralmente estão em férias e compram pacotes de viagens com roteiros pré-estabelecidos, se deslocam em grupos e que, de forma ignorante, fazem comparações pouco elogiosas entre qualquer coisa que estejam vendo com o equivalente de suas cidades. Os viajantes, no entanto, supostamente se aventuram mais porque querem ter a experiência total do lugar, conversando com locais, provando comida de rua, andando sem rumo pelas cidades sem a obrigação de tirar fotos em pontos turísticos.
Veja que não existe certo ou errado nesta discussão; o que existe são perfis diferentes. E ninguém, na minha opinião, definiu melhor o perfil do viajante do que o meu amigo Lucas Morello:
“Eu viajo pra sujar a minha alma da cultura que não é minha. Eu viajo pra limpar meu preconceito“.
Só assim podemos conhecer o outro verdadeiramente; só assim percebemos que estereótipos não passam de suposições, que o “outro” é como você, feito de carne e osso, que batalha, sofre, ama, tem sonhos.
O saudoso chef viajante Anthony Bourdain dizia que “você aprende muito sobre uma pessoa quando divide uma refeição com ela”. Meu papo com Mehmet, enquanto tomávamos chá, aconteceu em junho de 2019. Naquela ocasião eu já estava na estrada há um tempo e tinha visto diversos muçulmanos em minhas viagens. Confesso, no entanto, que até então os olhava com o mesmo olhar preconceituoso do meu amigo engraçadão do WhatsApp.
Ou seja, não nos tornamos pessoas melhores apenas viajando e tendo contato com algo novo. Dizer “eu não tenho preconceitos” é de uma arrogância sem tamanho. Somos todos mais ou menos preconceituosos e qualquer um que não se sinta envergonhado por quem era há dois anos, provavelmente seguirá vegetando num cantinho do mundo enquanto faz piadas preconceituosas no WhatsApp – mesmo que eventualmente dê uma turistada em Cancún ou Miami.
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