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Inaugurado em 1869 para ligar o Mar Vermelho ao Mediterrâneo, o Canal de Suez, uma das rotas de navio mais utilizadas do mundo, virou notícia tragicômica na última semana. O motivo foi o encalhe do navio Ever Given, que bloqueou o canal por 6 dias e gerou um prejuízo ainda incalculável para a economia internacional – fala-se em bilhões de dólares.

Antes de o Canal de Suez ser construído no Egito, as embarcações que navegavam entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Índico tinham que dar a volta em todo o continente africano pelo Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, o que faz o trajeto entre os portos do Golfo e de Londres ter o dobro de distância e adiciona de uma a duas semanas à viagem.

Em 1488, enquanto buscava o caminho marítimo às índias, o navegador Bartolomeu Dias foi o primeiro europeu a contornar o que hoje é conhecido como Cabo da Boa Esperança. Contam as crônicas da época que, como a tripulação enfrentou grandes tempestades no trajeto, Dias batizou sua descoberta como Cabo das Tormentas – rebatizada posteriormente de Cabo da Boa Esperança pelo rei D. João II.

Os holandeses chegaram ao Cabo da Boa Esperança em 1652, quando a Companhia Holandesa das Índias Orientais estabeleceu uma colônia comercial chamada Kaapstad, que mais tarde se tornaria a Cidade do Cabo, um entreposto onde navios em rota entre a Europa e as Índias paravam para seus homens descansarem.

O problema é que os holandeses decidiram ficar. E eles eram racistas. Para impor a sua dominação branca, os colonizadores holandeses entraram em guerra com os nativos, escravizando-os. Quando os ingleses chegaram na Cidade do Cabo, os holandeses fugiram para o interior e desenvolveram seu próprio idioma (o africâner), cultura e costumes, tornando-se, com o tempo, um povo distinto, os africânderes – os brancos da África do Sul.

Os ingleses aboliram a escravidão no papel, mas na prática tudo continuou igual. Com a queda do Império Britânico, os africânderes reivindicaram a África do Sul como sua herança de direito. Começava aí o mais avançado sistema de repressão racial já conhecido pela humanidade: o apartheid.

Assim como no Brasil, a grande ameaça ao apartheid, na visão dos africânderes, era um monstro metafísico: o comunismo. Em 1950, a Lei de Supressão ao Comunismo baniu o Partido Comunista Sul Africano e qualquer outra organização política que o governo decidisse catalogar como sendo “comunista”. Qualquer manifestante contra o regime poderia ser tachado de “comunista”, se sujeitando a graves penas. Ou seja, sendo você “comunista” ou não, era proibido se opor ao governo – soa familiar?

Com uma agenda focada em paparicar líderes autoritários e lamber as botas do Estados Unidos, a estratégia da política externa brasileira desde o primeiro dia de governo foi combater o “globalismo”. O Brasil, que já teve diplomatas do calibre de João Guimarães Rosa, Vinicius de Moraes, Oswaldo Aranha, Celso Amorim e, claro, Barão do Rio Branco, incorporou um insano discurso anticomunista sem qualquer fundamento na realidade. Falo, claro, do ano de 1964, quando o golpista Castelo Branco nomeou Vasco Leitão da Cunha para ser seu Ministro das Relações Exteriores após o golpe militar que completa 57 anos amanhã (31/03) para a alegria de Jair Bolsonaro – que ganhou na justiça o direito de comemorá-lo.

Sentado no topo do Farol da Ponta do Cabo, lembro de Bartolomeu Dias. Em Os Lusíadas, obra de poesia épica de Luís de Camões, o monstro metafísico Adamastor aterrorizou os capitães das naus portuguesas por terem ousado chegar até o Cabo das Tormentas. Deixando o folclore de lado, os portugueses ludibriaram Adamastor e conseguiram deixar o Oceano Atlântico e entrar no Índico. Ironicamente, Bartolomeu Dias morreria no Cabo da Boa Esperança em 1500, pouco tempo depois de fazer parte da esquadra de Pedro Álvares Cabral que descobriu (ou invadiu?) o Brasil.

Daqui de cima, olhando as ondas baterem nas rochas enquanto uma tormenta se forma no horizonte, tenho a boa esperança de dias melhores. Acabo de ler, ainda sem ter o 5G chinês, que um outro ministro globalista que combatia um monstro metafísico pediu demissão.

Cidade do Cabo, África do Sul, 30 de março de 2021.

Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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