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É meu aniversário e algo parece estar errado em Candem Town. A começar pelo tempo ensolarado na quase sempre nublada Londres. O distrito dos alternativos, berço do movimento punk e inspiração para escritores como Charles Dickens e George Orwell, ganhou fama mundial com sua moradora mais ilustre, a cantora Amy Winehouse que, mesmo após o estrelato, continuou frequentando os pubs de sempre e morando no número 30 da Candem Square.

Como acontece em qualquer região que entra nos holofotes, a gentrificação, termo que, inclusive, surgiu na Londres dos anos 1960, chegou em Candem Town. Com o incremento dos preços de moradias e do custo de vida, muitos moradores se viram obrigados a deixar a região. Outros, no entanto, foram para as ruas. Não é incomum cruzar com viciados em heroína que parecem ter saído de um filme de zumbis. Drogas ilícitas, aliás, podem ser encontradas com facilidade em quase todas as esquinas.

Após cruzarmos as lojinhas nada convencionais ao longo da Candem High Street, minha esposa e eu entramos no The Dublin Castle, um dos pubs mais antigos do bairro. Entramos ao acaso, na verdade. É meu aniversário e tudo o que quero são alguns pints de London Pride.

No interior do pub apenas uma das mesas está ocupada. Um grupo de amigos discute sobre a próxima música a ser tocada na jukebox. Nos fundos, uma grande porta dupla dá acesso a um pequeno espaço com música ao vivo. Uma banda cover de Rage Against the Machine se apresenta e cada vez que a porta se abre é possível observar uma pequena roda punk em frente ao palco.

Londres não é uma cidade para trabalhadores que ganham em real. Com a moeda brasileira desvalorizada e a libra na casa dos R$ 5, uma simples cerveja sai por R$ 25 –– ou £ 5. É meu aniversário, então peço dois pints, um para mim e outro para minha esposa.

Enquanto a garçonete loira de dentes avantajados serve nossos pints numa das torneiras do balcão de madeira, observo que, nas paredes vermelhas, entre pôsteres de bandas e fotos antigas, há um registro de Amy Winehouse no que parece ser um dos ambientes do pub. Há uma dedicatória na foto para Peggy, que presumo ser a dona do lugar, e um agradecimento por ela ter deixado Amy servir os clientes atrás do balcão. Segundo a cantora, ela precisava das gorjetas.

Amy Winehouse

Sento em nossa mesa R$ 50 mais pobre. Há um ditado popular que diz que “quem converte não se diverte”. Isso não se aplica em Londres. A cada gole na London Pride minha conta bancária esvazia junto com o copo. Me afundo no velho sofá de couro bordô e minha imaginação vai longe. É impossível não pensar que se eu tivesse aparecido ali anos antes poderia ter sido servido por Amy Winehouse.

Meus devaneios são interrompidos por um senhor que lembra o Keith Richards. Chapéu, lenço, óculos estilo Elton John, jaqueta jeans, calça rasgada nos joelhos e rugas que mostram que ele está na Terra há um bom tempo. Nessa altura o pub já está cheio. Ele pede para dividir o sofá conosco. Está acompanhado de sua esposa.

Engatamos um papo sobre música e aproveito para comentar que assistimos o show de Amy em Florianópolis meses antes de sua morte. Para nossa surpresa, aquele senhor que lembra o Keith Richards conhecia a cantora. Local de Candem Town, ele nos contou que costumava jogar sinuca com ela –– e que Amy ficava irritadíssima quando perdia.

Peço mais um pint para brindar com meu novo amigo. Descubro que sua esposa também está de aniversário. Brindamos e trocamos felicitações. Agora estou R$ 75 mais pobre. Por questões econômicas, minhas esposa escolhe não me acompanhar nessa rodada.

Quando meu copo esvazia pela segunda vez, aceito que é hora de ir embora. Quem sabe comprar um pack de cervejas no mercado e continuar a comemoração em casa. Me despeço do senhor que lembra o Keith Richards com um aperto caloroso de mãos.

Queria ter ficado mais, ter bebido mais, mas seria financeiramente irresponsável da minha parte. Ao passar pela última vez em frente ao balcão e avistar a foto assinada por Amy, penso que talvez eu também devesse pedir a Peggy que me deixasse servir os clientes. Afinal, é meu aniversário e eu também preciso das gorjetas.

Publicado originalmente no Medium.

Escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.
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