O número 210 da rua Orizaba, na Cidade do México, abrigava a sede informal da geração beat americana dos anos 1950. Nomes como Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg escolheram a capital mexicana para viver numa espécie de fuga das rígidas regras da sociedade americana da época. No México, onde a aplicação das leis era relativa, os escritores puderam dar vazão aos seus desejos e impulsos mais obscuros.
A antiga casa foi demolida e hoje é o endereço de um charmoso edifício com pequenos apartamentos. Foi lá que Kerouac, em meio a delírios etílicos y otras cositas más, escreveu Tristessa, romance que conta uma das histórias de amor mais tristes e decadentes da literatura beat: a paixão ardente do escritor por Esperanza Villanueva, uma prostituta índia viciada em morfina.
Há algumas quadras dali, no número 122 da rua Monterrey, Burroughs matou sua esposa, a poeta Joan Vollmer, de forma acidental durante uma festa em 06 de setembro de 1951. Essa é a versão oficial, pelo menos.
O livro A Vida Secreta dos Grandes Autores, de Robert Schnakenberg, conta:
“Em 1951, durante uma festa em sua casa no México, Burroughs e a esposa, Joan, decidiram regalar os convidados com a sua primorosa imitação de ‘Guilherme Tell’. Joan equilibrou um copo na cabeça, enquanto Burroughs fazia a mira com a sua pistola de 38 calibres. (Aparentemente, a questionável sensatez de um viciado em heroína completamente ‘chapado’ estar praticando tiro ao alvo com uma viciada em benzedrina não ocorreu a nenhum dos presentes.) Burroughs errou o alvo, explodindo os miolos de Joan e matando-a instantaneamente”.
Nosso tour literário por La Roma, o bairro dos beats que hoje é um reduto de artistas hipsters, termina enquanto procuramos o número 37 da rua Alvarado, endereço onde Burroughs e Vollmer viveram assim que chegaram ao México e que aparece no clássico On The Road de Kerouac. Somos recepcionados por uma faixa da associação de moradores do bairro avisando aos ladrões que vigias foram contratados. Melhor voltarmos para o La Oliva, simpático café onde naquela manhã fizemos amizade com um talentoso escultor natural de Chihuahua, uma das cidades mais sangrentas do país.
É final de tarde na Cidade do México e a internet do celular não funciona. Sem conseguir chamar um motorista no aplicativo de transporte, minha companheira e eu nos vemos obrigados a entrar no primeiro táxi que passa pela rua Orizaba.
O carro é velho. O painel tem enfeites religiosos e uma pequena bandeira do Cruz Azul tremulando. O rádio toca alguma música do Buena Vista Social Club. O taxista compartilha da mesma decadência do carro e de Esperanza, a prostituta. Ele se encaixaria perfeitamente no submundo dos becos esfumaçados descritos por Kerouac em Tristessa. Sua tez extremamente marrom, num tom acima dos mexicanos tradicionais na paleta de cores dos estereótipos, o faz lembrar um indiano. Os traços de índio asteca nos cabelos, nos olhos e na barba rala, contudo, entregam sua nacionalidade. A camisa listrada está aberta até metade da barriga. Faz um calor descomunal na Cidade do México.
— Vocês se importam se eu fumar? –– nos pergunta.
“Me importo”, penso.
— Não. –– respondemos em uníssono.
Ele acende um cigarro e começa a puxar papo. Quer saber nossa nacionalidade. Quando respondemos “Brasil”, a conversa, claro, descamba para o futebol. Os mexicanos adoram o futebol brasileiro por causa da Copa de 1970. Não os culpo.
Quando o carro decadente e agora com cheiro de cigarro no seu interior para no sinal vermelho, o taxista nos pergunta se já fomos até os Estados Unidos. Conta que morou 10 anos numa cidadezinha próxima a fronteira com o México. Pergunto o que ele fazia lá.
–– Eu era coiote. Um atravessador, sabe? Atravessava mexicanos, brasileiros, guatemaltecos, salvadorenhos… Pessoas em busca de uma vida melhor na América.
–– U-a-u. –– é tudo que sai da minha boca.
Fito minha esposa com um olhar de incredulidade enquanto o silêncio no interior do carro com cheiro de cigarro é ensurdecedor. Estávamos num táxi com um personagem que parecia ter saído das aventuras de Jack Kerouac pelo México.
–– Perguntei dos Estados Unidos porque vocês são jovens. Sei que o Brasil é como o México. Posso ajudar vocês. Tenho alguns contatos. –– ele insiste no assunto.
O taxista coiote, ou coiote taxista, estava agora prospectando novos clientes. Provavelmente havia largado o trabalho duro na fronteira, mas de alguma forma ainda estava ligado aos atravessadores. Era uma espécie de cafetão. O emprego como taxista soa como um disfarce perfeito.
–– Você gostava do que fazia? –– minha esposa questiona.
–– Eu gostava da emoção. Era gratificante quando atravessávamos os clientes pela fronteira. –– fala orgulhoso.
–– E não era perigoso? –– dessa vez eu faço a pergunta.
–– Perigoso… –– sua fala é interrompida pelo som de uma buzina.
Ele coloca a cabeça pra fora do carro e amaldiçoa algum motorista. Nossos olhares se cruzam pelo espelho retrovisor interno e ele completa sua frase.
–– Perigoso é ser taxista na Cidade do México.