O ano era 2003. Eu tinha 14 anos. Florianópolis sediava a etapa brasileira do Circuito Mundial de Surfe (CT) – conhecido na época como WCT.
A falta de ondas na capital catarinense fez com que o evento fosse transferido para a Praia da Vila, em Imbituba, minha cidade natal e onde morei por 23 anos. Na praia onde cresci jogando bola e pegando jacaré circulavam agora Kelly Slater e o já falecido Andy Irons, lendas do surfe que éramos acostumados a ver apenas na também falecida revista Fluir.
Em 2004 e 2005 a cena se repetiu: as ondas não apareceram em Florianópolis e Imbituba salvou a etapa brasileira do antigo WCT. Até que no ano seguinte, a pedido dos surfistas, a Praia da Vila se tornou a sede oficial do Circuito Mundial de Surfe no Brasil.
Imbituba recebeu a elite mundial do surfe até 2010. Em 2011, a Associação dos Surfistas Profissionais (ASP) – que hoje se chama Liga Mundial de Surfe (WSL) – decidiu trocar a cidade do sul catarinense pelo Rio de Janeiro por questões financeiras bem simples: o retorno para o evento é muito maior na capital carioca por conta de patrocinadores e, claro, pelo apelo turístico da Cidade Maravilhosa.
Para nós, imbitubenses, restou acompanhar o CT por broadcast. Desde 2005, época em que Kelly Slater e Andy Irons ainda surfavam na Praia da Vila, as etapas são transmitidas online. O pioneirismo, como você verá ao longo desse artigo, é uma característica marcante do mundo do surfe.
A tecnologia a favor do esporte – e do entretenimento
A possibilidade do mundo inteiro poder assistir ao vivo pela internet as maiores estrelas do surfe competindo nas melhores ondas do mundo começou de forma bem rústica numa época em que ainda não se falava sobre transmissões pela internet. Hoje, as etapas são transmitidas em HD e com narrações em inglês e português.
A maior inovação dentro do mundial de surfe, porém, aconteceu em 2018.
Em 2016, Kelly Slater inaugurou uma piscina artificial de ondas perfeitas (!!!). Pois bem, no final do ano passado, a WSL anunciou que uma das etapas do CT aconteceria no Surf Ranch, a piscina do Kelly Slater.
Desenvolvida ao longo de dez anos pelo surfista onze vezes campeão mundial, a piscina do Surf Ranch tem ondas consideradas perfeitas, permitindo desde manobras aéreas a longos tubos. O ambiente controlado, sem o impacto das variações do mar e da escolha das ondas, coloca os atletas em condição de igualdade.
A etapa do Surf Ranch, que marca um novo capítulo da história do esporte, aconteceu na primeira semana de setembro e teve vitória brasileira na competição masculina. Gabriel Medina venceu o também brasileiro Filipe Toledo e ficou com o título. Já no feminino, a vitória ficou com a havaiana Carissa Moore, que derrotou a australiana Stephanie Gilmore.
Com elementos inéditos como o formato de disputa, sem baterias, e a presença de público pagante, o evento começou e terminou pontualmente nos horários marcados, num cenário completamente diferente das etapas que acontecem no mar – vide Florianópolis/Imbituba em 2003.
Se no futebol, o esporte mais popular do mundo, a presença da tecnologia em campo gera diversas discussões, no surfe ela tem sido bem aceita e, inclusive, pode se tornar uma solução olímpica, já que o esporte estará presente nas Olimpíadas a partir de 2020 em Tóquio, no Japão.
A primeira entidade esportiva a igualar a premiação de homens e mulheres
A mudança mais legal e significativa dentro do CT, no entanto, aconteceu fora d’água. Durante o Surf Ranch Pro a WSL anunciou o calendário de 2019 para os circuitos masculino e feminino. A principal novidade para a próxima temporada, porém, não diz respeito ao cronograma de disputa: a entidade que controla o surfe mundial anunciou que, a partir de 2019, as competições terão premiações iguais para homens e mulheres.
Sophie Goldschmidt, CEO da WSL, explicou a decisão.
“Esse é um enorme avanço em nossa estratégia de levar o surfe feminino a um novo patamar e estamos empolgados em assumir esse compromisso ao anunciar nosso cronograma de 2019. Esta é a mais recente de uma série de ações que a Liga se comprometeu a tomar em relação a nossas atletas, desde competir nas mesmas ondas de qualidade que os homens até receber mais investimento e apoio“.
A australiana Stephanie Gilmore, seis vezes campeã mundial, foi a primeira a se pronunciar a respeito.
“O prêmio em dinheiro é fantástico, mas a mensagem significa ainda mais. Espero que isso sirva de exemplo para outros esportes, organizações globais e para a sociedade como um todo“.
Entre os homens, a novidade da WSL também repercutiu positivamente. Kelly Slater, maior surfista da história e dono do Surf Ranch, também deu seu depoimento.
“As mulheres do circuito merecem essa mudança. Me orgulha que o surfe esteja optando por liderar o esporte na busca por igualdade e justiça. As mulheres que participam da WSL são tão comprometidas com seu trabalho quanto os homens e devem receber a mesma premiação. O surfe sempre foi um esporte pioneiro, e esse é um exemplo disso”.
A WSL é a primeira entidade esportiva mundial a igualar a premiação de homens e mulheres. Fica a torcida para que o mesmo ocorra em outros esportes e que, como a surfista Stephanie Gilmore bem pontuou, o exemplo sirva também para organizações globais e para a sociedade como um todo.